domingo, 31 de janeiro de 2010

Rifa-se um coração

Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque
que insiste em pregar peças no seu usuário.

Rifa-se um coração
que na realidade está um pouco usado, meio calejado,
muito machucado e que teima em alimentar sonhos
e cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüente
que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração
que acha que Tim Maia estava certo quando
escreveu...
"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu
espero...".
Um idealista... 
Um verdadeiro sonhador...

Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz,
sendo simples e natural.
Um coração insensato
que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida
que vive procurando relações e emoções verdadeiras.

Rifa-se um coração
que insiste em cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.

Rifa-se este desequilibrado emocional
que abre sorrisos tão largos
que quase dá pra engolir as orelhas,
mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado,
ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.

Um órgão abestado
indicado apenas para quem quer viver intensamente
contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida
matando o tempo,
defendendo-se das emoções.

Rifa-se um coração
tão inocente que se mostra sem armaduras
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro
na hora da prestação de contas:
"O Senhor pode conferir.
Eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento
Rifa-se um coração,
ou mesmo troca-se por outro
que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar
a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.

Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos
que mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra, constrange o corpo que o domina.

Um velho coração
que convence seu usuário a publicar seus segredos
e a ter a
petulância de se aventurar como poeta

Ainda é, mesmo quando já foi

O amor não morre de pé. O amor morre deitado para confundir os cabelos e ousar de novo. Toda separação é um laço. Todo divórcio é um vinculo. Conheço gente que se separa só pra se aproximar de outro jeito. Para provocar, para atrair a atenção, para pedir o retorno. Não há ofensa que não tenha uma carícia em seu início.
Fazer as malas é a última tentativa. Fazer as malas é preservar o armário. A mala pode ser o túmulo do armário ou uma outra cama de casal. Na mala, as roupas, enfim, se deitam, se amam, se roçam, sem a proteção e o biombo dos cabides. As mangas entram com malícias em bolsos, os botões abertos são brincos, os zíper é uma gargantilha, camisas experimentam gravatas, calças andam com uma única perna.
O amor não é de onde nasceu. O amor é natural de onde morreu.
O sofrimento é o contrário: morre onde foi parido. Morre sem trocar de cidade.
Mesmo que seja maltratado, estiolado, reduzido a pó, o amor volta, regenera-se com facilidade. O amor tem pele de sobra nos olhos. No amor, a pele é a córnea.
Quem ama não é capaz de morrer por um amor, é capaz de voltar a viver por um amor.
O amor perdoa o que Deus condenaria; o amor condena o que Deus perdoaria.
O amor é imprevisível. Não tem lógica. Torna a presença imaginada ou torna a ausência real.
O amor cria sua própria necessidade; não é uma obrigação, é uma opção. Não se é obrigado a amar, até é possível viver uma vida sem amor, mas não é possível viver o amor sem dar a vida em troca.
O amor é encostar para dormir e ficar mais acordado ainda.
O amor ilude, contraria, engana. É instável e machuca, abre ferimentos graves e invisíveis, confunde um pássaro com fruto e prende as patas em um caule, corta as asas como se fossem gomos, esvazia a casa, arruína a fé, cria os piores fiascos, infantiliza os joelhos, devasta o certo e o errado, inventa lugares para se esconder, quebra as lentes dos óculos, expulsa amizades, prepara escândalos, esconjura atrasos. Ainda assim é melhor do que o tédio. Ninguém se agride pelo tédio, pois ele anula qualquer vontade.
O amor é como o rio, não deixa de barulhar represado de pedras.
Sofrer é pouco ao amor. As lágrimas nunca serão fartas como a saliva. A saliva é a lágrima da alegria.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Alegria na tristeza,

O título desse texto na verdade não é meu, e sim de um poema do uruguaio Mario Benedetti. No original, chama-se "Alegría de la tristeza" e está no livro "La vida ese paréntesis" que, até onde sei, permanece inédito no Brasil.

O poema diz que a gente pode entristecer-se por vários motivos ou por nenhum motivo aparente, a tristeza pode ser por nós mesmos ou pelas dores do mundo, pode advir de uma palavra ou de um gesto, mas que ela sempre aparece e devemos nos aprontar para recebê-la, porque existe uma alegria inesperada na tristeza, que vem do fato de ainda conseguirmos senti-la.

Pode parecer confuso mas é um alento. Olhe para o lado: estamos vivendo numa era em que pessoas matam em briga de trânsito, matam por um boné, matam para se divertir. Além disso, as pessoas estão sem dinheiro. Quem tem emprego, segura. Quem não tem, procura. Os que possuem um amor desconfiam até da própria sombra, já que há muita oferta de sexo no mercado. E a gente corre pra caramba, é escravo do relógio, não consegue mais ficar deitado numa rede, lendo um livro, ouvindo música. Há tanta coisa pra fazer que resta pouco tempo pra sentir.

Por isso, qualquer sentimento é bem-vindo, mesmo que não seja uma euforia, um gozo, um entusiasmo, mesmo que seja uma melancolia. Sentir é um verbo que se conjuga para dentro, ao contrário do fazer, que é conjugado pra fora.

Sentir alimenta, sentir ensina, sentir aquieta. Fazer é muito barulhento.

Sentir é um retiro, fazer é uma festa. O sentir não pode ser escutado, apenas auscultado. Sentir e fazer, ambos são necessários, mas só o fazer rende grana, contatos, diplomas, convites, aquisições. Até parece que sentir não serve para subir na vida.

Uma pessoa triste é evitada. Não cabe no mundo da propaganda dos cremes dentais, dos pagodes, dos carnavais. Tristeza parece praga, lepra, doença contagiosa, um estacionamento proibido. Ok, tristeza não faz realmente bem pra saúde, mas a introspecção é um recuo providencial, pois é quando silenciamos que melhor conversamos com nossos botões. E dessa conversa sai luz, lições, sinais, e a tristeza acaba saindo também, dando espaço para uma alegria nova e revitalizada. Triste é não sentir nada.

Conselho de uma lagarta,

A Lagarta e Alice olharam-se uma para outra por algum tempo em silêncio: por fim, a Lagarta tirou o narguilé da boca, e dirigiu-se à menina com uma voz lânguida, sonolenta.

"Quem é você?”, perguntou a Lagarta.

Não era uma maneira encorajadora de iniciar uma conversa. Alice retrucou, bastante timidamente: “Eu — eu não sei muito bem, Senhora, no presente momento — pelo menos eu sei quem eu era quando levantei esta manhã, mas acho que tenho mudado muitas vezes desde então.

“O que você quer dizer com isso?”, perguntou a Lagarta severamente. “Explique-se!”
“Eu não posso explicar-me, eu receio, Senhora”, respondeu Alice, “porque eu não sou eu mesma, vê?”

“Eu não vejo”, retomou a Lagarta.

“Eu receio que não posso colocar isso mais claramente”, Alice replicou bem polidamente, “porque eu mesma não consigo entender, para começo de conversa, e ter tantos tamanhos diferentes em um dia é muito confuso.”

“Não é”, discordou a Lagarta.

“Bem, talvez você não ache isso ainda”, Alice afirmou, “mas quando você transformar-se em uma crisálida — você irá algum dia, sabe — e então depois disso em uma borboleta, eu acredito que você irá sentir-se um pouco estranha, não irá?”

“Nem um pouco”, disse a Lagarta.

“Bem, talvez seus sentimentos possam ser diferentes”, finalizou Alice, “tudo o que eu sei é: é muito estranho para mim.”

“Você!”, disse a Lagarta desdenhosamente. “Quem é você?”

O que as trouxe novamente para o início da conversação. Alice sentia-se um pouco irritada com a Lagarta fazendo tão pequenas observações e, empertigando-se, disse bem gravemente: “Eu acho que você deveria me dizer quem você é primeiro.”

“Por quê?”, perguntou a Lagarta.

Aqui estava outra questão enigmática, e, como Alice não conseguia pensar nenhuma boa razão, e a Lagarta parecia estar muito chateada, a menina despediu-se.

“Volte”, a Lagarta chamou por ela. “Eu tenho algo importante para dizer!”

Isso soava promissor, certamente. Alice virou-se e voltou.

“Mantenha a calma”, disse a Lagarta.

“Isso é tudo?”, retrucou Alice,engolindo sua raiva o quanto pôde.

“Não”, respondeu a Lagarta.

Alice pensou que poderia muito bem esperar, já que não tinha nada para fazer, e talvez no fim das contas ela poderia dizer algo que valesse a pena. Por alguns minutos a Lagarta soltou baforadas do seu cachimbo sem falar; afinal, ela descruzou os braços, tirou o narguilé da boca novamente e disse: “Então você acha que mudou, não é?”

“Temo que sim, Senhora”, respondeu Alice. “Não consigo lembrar das coisas como antes — e não mantenho o mesmo tamanho nem por dez minutos!”

“Não consegue lembrar que coisas?”, continuou a Lagarta.

“Bem, eu tentei recitar ‘Como a abelhinha estava atarefada’, mas fiz tudo diferente!” Alice replicou numa voz muito melancólica.

“Repita ‘Você está velho, Pai William’, pediu a Lagarta.

Alice cruzou as mãozinhas e começou:

Você está velho, Pai Joaquim, disse o jovem,

E seu cabelo está ficando branquinho,

Mas você ainda planta bananeira,

Você acha, que na sua idade, isso está certo?

Na minha juventude, Pai Joaquim respondeu,

Tinha medo de perder a cabeça,

Mas agora eu sei que não posso perder,

Porque não paro de plantar bananeira e estou inteiro.

Você está velho, já falei uma vez, retrucou o jovem,

E está engordando demais,

Mas ainda entra aqui dando cambalhotas,

Por favor, como você faz isso?

Na minha juventude, disse o velho,

Eu me mantive em forma,

Usando esse ungüento — é bem baratinho,

Posso vender uns dois potes para você?

Você está velho, disse o jovem, e seus dentes estão fraquinhos

Para mastigar qualquer coisa dura.

Mas você ainda come um ganso com osso e tudo,

Por favor, como você faz isso?

Na minha juventude, disse o velho, eu acreditava na Lei,

E discutia tudo com minha mulher,

O treino que fiz naquela época,

Durou para o resto da minha vida!

Você está velho, disse o jovem, e ninguém pode acreditar

que você ainda enxerga bem.

Mas ainda assim você equilibra uma enguia na ponta do nariz.

O que deixou você tão esperto?

Já lhe respondi três perguntas, agora chega,

Disse o velho, e não pense que você me agrada!

Você acha que vou perder meu dia ouvindo suas bobagens?

Pode sumir, ou vai levar um pontapé no traseiro!

“Isso não está dito certo”, disse a Lagarta.

“Não bem certo, eu receio”, respondeu Alice timidamente, “algumas das palavras podem ter sido trocadas”.

“Está errado do começo ao fim”, afirmou a Lagarta decididamente. Então fez-se um silêncio por alguns minutos.

A Lagarta foi a primeira a falar.

“De que tamanho você quer ser?”, ela perguntou.

“Oh, eu não ligo para qual tamanho”, respondeu Alice apressadamente, “apenas um que não fique mudando sempre, a senhora sabe.”
 


 
 
Alice no país das maravillhas 
Lewis Carroll

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Bipolar

Eu amo desorganizado, desavergonhado. Tenho um amor que não é fácil de compreender porque é confuso. Não controlo, não planejo, não guardo para o mês seguinte. A confusão é quase uma solidão adicional. Uma solidão emprestada.
Sou daqueles que pedirá desculpa por algo que o outro nem chegou a entender, que mandará nova carta para redimir uma mágoa inventada, que estará se cobrando antes de dizer.
Basta alguém me odiar que me solidarizo ao ódio. Quisera resistir mais. Mas eu faço comigo a minha pior vingança.
Amar demais é o mesmo que não amar. A sobra é o mesmo que a falta. Desejava encontrar no mundo um amor igual ao meu. Se não suporto o meu próprio amor, como exigir isso?
Um dia li uma frase de Hegel: “Nada de grande se faz sem paixão” Mas nada de pequeno se faz sem amor.
A paixão testa, o amor prova.
A paixão acelera, o amor retarda.
A paixão repete o corpo, o amor cria o corpo.
A paixão incrimina, o amor perdoa.
A paixão convence, o amor dissuade.
A paixão é o desejo da vaidade, o amor é a vaidade do desejo.
A paixão não pensa, o amor pensa.
A paixão vasculha o que o amor descobre.
A paixão não aceita testemunhas, o amor é testemunha.
A paixão facilita o encontro, o amor dificulta.
A paixão não se prepara, o amor demora pra falar.
A paixão começa rápido, o amor não termina.
Não me dou paz sequer um segundo. Medo imenso de perder as amizades, de apertar demais as palavras e estragar o suco, de ser violento com a respiração e virar asma.
Até a minha insegurança é amor.
O pente nos meus cabelos é faca, enquanto é garfo para os demais.
Sofro a incompetência natural para medir a linguagem as laranjas; acredito desde pequeno que tudo que cabe na mão me pertence.
Minha lareira não dura uma noite, esqueço da reposição das achas, do envolvimento da lenha no jornal, de assoprar o fundo.
Brigo com o bom senso. Ou sinto calor demais ou sinto frio demais.
Uma ânsia de ser feliz do que a coordenação dos braços. Um arroubo de abraçar e de se repartir, de se fazer conhecer, que assusta. Parece agressivo, mas é exagerado.
Conto tragédias de forma engraçada, falo de coisas engraçadas como tragédia. Nunca o riso ou o choro acontece quando quero.
Cumprimento como se fosse uma despedida.
Desço a escada de casa ao trabalho com resignação, mas subo na volta pulando os degraus.
Esse sou eu: que vai pela esperança da volta.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Roupa Suja

Maria, nem sei por onde começar. A contar. A minha história de amor. Quando ele, Meu Deus, entrou na lavanderia. Parecia propaganda de sabão. Tudo à minha volta ficou limpo, límpido, este mundo cão.
- Pois não.
Cheiroso, nem olho para o meu alvoroço. Nem sequer um pensamento. Leve. Ele, dentro de uma bolha. Eu, tão rastejante. Nada, a partir daquela manhã, foi a mesma coisa. Meu trabalho desandou. Boiou. Quase perdi o emprego.
Amor, Maria, amor.
Sabe o que é isso?
Fragrância de flor.
Comecei a usar blusinha curta. E a esperar. Toda sexta atrás de sexta. O meu homem chegar. Sem olhar para o meu perfume, apenas ordenar: para lavar, secar e passar. A barba mal aparada dentro dos óculos de marca. Escuro. Sua língua rosa. Juro: eu mordiscava.
Que nada!
Nenhum aceno de verão. Inverno. Eu queria ele para meu marido, Maria, sério. Sabe galã de novela? Era o que era. A alma atlética dele. Miséria! Mulher como eu, sujinha e pobrinha, chance nenhuma. Nunquinha. Como ganhar na lotérica.
Impossível!
Mas a gente não deve desistir.
Feito nódoa que a gente tira, com sacrifício. Ali, esfrega. Torce, bate na centrífuga. O nosso destino. Um dia muda de cor.
Foi aí que tive a ideia.
Peguei o pentelho de sua cueca. Feito este, olhe. Não tenha nojo. Pêlo grosso, que eu levei para o Painho.
- Eu quero este homem só pra mim.
- Minha filha, ele será seu, sim.
Foi o que meu orixá prometeu. E eu acreditei. Eu me agarrei nesta fé. Eu rodopiei e dancei, no batuque. Meu, só meu. Príncipe. E rei.
E saiba você que não fiquei só nisso.
Pirei. Levei para minha casa sua samba-canção. E sambei. Vestido dentro do corpo dele o meu umbigo. Eu vesti. E senti entre as minhas coxas as suas coxas. E, Maria, jura que não conta? Assim: melequei a roupa do cliente. Múltiplos orgasmos, entende? Paixão que foi me deixando quente e doente.
E ele nem aí.
Veio, um dia, na lavanderia com a quenga. A namorada. Painho, por que não me tira do meu caminho essa desgraçada? Mata ela afogada na água sanitária?
Casal tão feliz na frente do meu nariz. Ah! Meu Pai! E quando casarem? E tiverem filhos ruivos e ricos, me diga. Sou eu quem vai lavar a bosta inteira da família? As fraldas do berço?
Nem pensar.
Algo teria de acontecer.
Minha nova ideia foi perder dinheiro.
Isso, Maria, dinheiro. Que eu não tinha.
Fiz uma reservinha e, quando ele veio, paguei.
- Encontrei no seu bolso.
Cinqüenta reais.
Mentira!
Era só para ele ver quanto eu valia. Nadinha. E eu poderia encontrar tantos tesouros para ele. Ao inferno eu iria, juro. Ao cu do mundo. Dourado.
Ele, espantado, agradeceu com um sorriso.
Maria, Maria!
Até hoje guardo na vista. Aquele primeiro sorriso, aberto. Um sol todo pra mim. Banhando a natureza, enfim. Secando as almas cheirosas..
Essência de rosas, Maria.
Essência de rosas.
Daí por diante, melhorou um pouco. Ele já chegava e colocava os óculos no peito, tesudo. E batia o olhar no meu olho. E falava, um pouco mais felpudo: pra lavar, passar e secar.
E o tempo foi passando e eu fui de novo lá:
- Painho, assim não dá.
- Você vai à casa dele.
- O quê?
- Isso não vai demorar.
Quantos pentelhos terei de resgatar do fundo do cesto para que isso aconteça? O pior foi quando numa sexta-feira, Maria, a maldita apareceu. A namorada azeda.
Veio deixar a trouxa dele e as calcinhas dela. De morango. Fui ao centro e gastei mais dinheiro. Comprei calcinhas iguais. Apertadinhas. De tudo que é frutinha. O que ela está pensando? Se sou eu, euzinha, a única que cuida dos seus lençóis e das suas fronhas. Sonho com os seus sonhos. E durmo.
Que susto!
Era ele no telefone.
- Você poderia trazer o meu paletó?
- O quê?
- Aqui no apartamento?
- Como?
- Estou sem tempo.
Maria, para você ver como é a vida. Pura persistência. Não tem essa de achar que não se pode misturar. Todo mundo acaba por girar na mesma máquina. Imensa.
Corri para a rua. Retoquei o batom. Feito puta. Ele me prometeu uma gorjeta. Se eu lá fosse. E subisse.
- Eu tenho de subir.
Se o porteiro não me deixasse, haveria morte. Eu pularia no seu cangote, rasgaria o seu bigode. Não foi preciso. Entro no elevador como quem entra no futuro. Não mais pelos fundos. Bem que Painho adivinhou. Era pra ser de verdade, Maria, este amor.
Chamei. Ele veio atender.
Não era ele...
Um careca, ora essa. Engano.
- Aqui, querida.
No mesmo corredor, na porta em frente, esperava-me o senhor da minha vida.
- Ó o paletó.
Agradeceu e me deu (devolveu) dez reais. Calculei: agora, só me deve quarenta. Ora, ele que não pense que as coisas eternamente vão ficar assim. Neste chove-não-molha. Pedi água. Suei, falei que não estava me sentindo bem. E desmaiei
Isso o que você ouviu, Maria. Desmaiei. Despenquei feito vento quando bate numa pétala. Simulei.
Vi quando ele me despejou no sofá. Trouxe lencinho engomado e álcool. Como um pai preocupado. Meu marido velho, para todo o sempre.
Fui acordando, brotando displicentemente.
- Onde estou?
- Melhorou?
Pedi só para descansar um pouco ali, no conforto. Almofadas cheirando a sabão de coco. Enquanto ele vestia, no quarto, o seu paletó. Meu trabalhador. Senti-me sua esposa, àquela sala. Indisposta. Quem sabe, grávida?
De propósito, cerrei os olhos. Até que ele veio e me chamou. Bem de perto, outra vez.
- Melhorou?
Eu não agüentei e puxei o seu corpo pela gravata. Com a cara mais lavada, sabe o que eu fiz? Maria, eu sou doida.
Dei-lhe um beijo desentupidor.
Parece que o mundo virou um ralo só. E nós dois, sugados pelo mesmo destino. Juntos desde daquele dia. Quem diria?
Escute bem, Maria. Se hoje é você quem lava a cueca do meu marido, amanhã pode ser a dona da lavanderia.


*Do livro: Rasif - O Mar que Arrebenta

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

NOSSO AMOR BEM PUTO

Nem fomos ao mar para ver o nosso amor morrer na praia. Nosso amor morreu engarrafado, na correria do povo para deixar São Paulo, babilônicos corações de fumaça a 10 km por hora. Nosso amor largou o automóvel e saiu caminhando, melancólico, entre motoboys e miragens, crepúsculo cubatanesco a escorrer do nariz.

Stop, parou o nosso amor ou é apenas um sinal fechado?

Minutos antes, nosso amor foi visto saindo do Paraíso e saltando na Consolação, a linha do último metrô de todos os amores expressos. Aí nosso amor, puto da vida, bebeu cachaça, cheirou cola, acendeu o cachimbo na Cracolândia, perdeu os óculos, as lentes de contato, pegou um papelote de quinta na Augusta, gastou a pele, fez besteiras e vomitou bem muito o foie-gras dos nossos próprios fígados. Nosso amor não conseguiu dormir direito nesse dia, zumbizou geral o malaco, e não foi apenas o barulho da construção mais demorada do que a catedral de Colônia, a Transamazônica ou o castelo de Kafka.

Nosso amor só pode estar tirando onda da nossa cara, é o tipo do amor que sabe rir da nossa desgraça, um amor de rapariga da última luz vermelha do fim do mundo, um amor da porra, que não respeita as leis do cosmo, nosso amor é uma ficção barata, café puro, pão na chapa, nosso amor nem esfriou ainda o cadáver, acabou no auge, como a carreira de Pelé, como os Beatles, nosso amor era sábio. E como os amores reencarnam, muito cuidado, senhoras e senhores, nosso amor pode estar rondando ai a sua área. Prendam o criminoso, onde está a polícia que não vê uma coisa dessas, tio Nelson?

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A carta,

Envio esta carta porque nunca mais quero você na minha frente. E dessa vez falo sério. Nunca mais quero ouvir a sua voz, mesmo que seja se derramando em desculpas. Nunca mais quero ver a sua cara, nem que seja se debulhando em lágrimas arrependidas. Quero que você suma do meu contato, igual a um vírus ao qual já estou imune.
A verdade é que me enchi. De você, de nós, da nossa situação sem pé nem cabeça. Não tem sentido continuarmos dessa maneira. Eu, nessa constante agonia, o tempo todo imaginando como você vai estar. E você, numas horas doce, noutras me tratando como lixo. Não sou lixo. Tampouco quero a doçura dos culpados, artificial como aspartame.
Fico pensando como chegamos a esse ponto. Como nos permitimos deixar nosso amor acabar nesse estado, vendido e desconfiado. Não quero mais descobrir coisas sobre você, por piores ou melhores que possam ser. Não quero mais nada que exista no mundo por sua interferência. Não quero mais rastros de você no meu banheiro.
Assim, chega. Chega de brigas, de berros, de chutes nos móveis. Chega de climas, de choros, de silêncio abismais. Para que, me diz? O que, afinal, eu ganho com isso? A companhia de uma pessoa amarga, que já nem quer mais estar ali, ao meu lado, mas em outro lugar? O tédio a dois - essa é a minha parte no negócio? Sinceramente, abro mão. Vou atrás de um outro jeito de viver a minha vida, já que em qualquer situação diferente estarei lucrando. Mas antes faço questão de te dizer três coisas.
Primeira: você não é tão interessante quanto pensa. Não mesmo. Tive bem mais decepções do que surpresas durante o tempo em que estivemos juntos.
Segunda: não vou sentir falta do teu corpo. Já tive melhores, posso ter novamente, provavelmente terei. Possivelmente ainda esta semana.
Terceira: fiquei com um certo nojo de você. Não sei por que, mas sua lembrança, hoje, me dá asco. Quando eu quiser dar uma emagrecida, vou voltar a pensar em você por uns dias.

Bom, era isso. Espero que esta carta consiga levantar você do estado deplorável em que se encontra. Mentira. Não espero nenhum efeito desta carta, em você, porque, aí, veria-me torcendo pela sua morte. Por remorso. E como já disse, e repito, para deixar o mais claro possível, nunca mais quero saber de você.

Se, agora, isso ainda me causa alguma tristeza, tudo bem. Não se expurga um câncer sem matar células inocentes.

Adeus, graças a Deus.

Nome do remetente.

P.S.: esta não é mais uma dessas cartas-desabafo.
P.S. do P.S.: esta é uma carta-desabafo-quase-música-de-Adriana-Calcanhoto

Fernanda Young arrasa com o nosso projeto de vida!

Filhos,


Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O dia que Júpiter encontrou Saturno

Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela. A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.


Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.


Levemente, para não chamar atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito sobre o peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse.


Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha.


E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every dau, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos dos moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.


-Você gosta de estrelas?

-Gosto. Você também?

-Também. Você está olhando a lua?

-Quase cheia. Em Virgem.

-Amanhã faz conjunção com Júpiter.

-Com Saturno também.

-Isso é bom?

-Eu não sei. Deve ser.

-É sim. Bom encontrar você.

-Também acho.


(Silêncio)


-Você gosta de Júpiter?

-Gosto. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".

-Que é isso?

-Um poema de um menino que vai morrer.

-Como é que você sabe?

-Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.


(Silêncio)


-Você tem um cigarro?

-Estou tentando parar de fumar.

-Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.

-Você tem uma coisa nas mãos agora.

-Eu?

-Eu.


(Silêncio)


-Como é que você sabe?

-O quê?

-Que o menino vai se matar.

-Sei de muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.

-Eu não sei nada.

-Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.

-Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.

-Ninguém compreende.

-Às vezes sim. Eu te ensino.

-Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.

-Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?


(Silêncio)


-Você tomou alguma coisa?

-O quê?

-Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.

-Não tomei nada. Não tomo mais nada.

-Nem eu. Já tomei tudo.

-Tudo?

-Cogumelos têm parte com o diabo.

-O ópio aperfeiçoa o real

-Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.


(Silêncio)


-Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.

-Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.

-Alguma coisa se perdeu.

-Onde fomos? Onde ficamos?

-Alguma coisa se encontrou.

-E aqueles guizos?

-E aquelas fitas?

-O sol já foi embora.

-A estrada escureceu.

-Mas navegamos.

-Sim. Onde está o Norte?

-Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.


(Silêncio)


-Você é de Virgem?

-Sou. E você, de Capricórnio?

-Sou. Eu sabia.

-Eu sabia também.

-Combinamos: terra.

-Sim. Combinamos.


(Silêncio)


-Amanhã vou embora para Paris.

-Amanhã vou embora para Natal.

-Eu te mando um cartão de lá.

-Eu te mando um cartão de lá.

-No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.

-No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.


(Silêncio)


-Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada do meu lado, olhando de perfil.

-Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.

-Vamos nos ver?

-No teu chá. No meu chá.


(Silêncio)


-Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.

-Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.

-Vou te escrever carta e não te mandar.

-Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.

-Vou ver Júpiter e me lembrar de você.

-Vou ver Saturno e me lembrar de você.

-Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.

-O tempo não existe.

-O tempo existe, sim, e devora.

-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?

-Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.

-E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.


(Silêncio)


-Mas não seria natural.

-Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.

-Natural é encontrar. Natural é perder.

-Linhas paralelas se encontram no infinito.

-O infinito não acaba. O infinito é nunca.

-Ou sempre.


(Silêncio)


-Tudo isso é muito abstrato. Está tocando "Kiss, kiss, kiss". Por que você não me convida para dormirmos juntos.

-Você quer dormir comigo?

-Não.

-Porque não é preciso?

-Porque não é preciso.


(Silêncio)


-Me beija.

-Te beijo.


Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das calças descosturadas, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.


Mordeu a unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela. Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés inseguros comprimindo o piso instável do elevador. Só porque era sábado, porque estava indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu olhando em volta.


Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.


Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão de lado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-sena janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.


De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando "se Deus quiser, um dia acabo voando". Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Só estrelas,

Fragmentos da obra de Edson Marques. 

"Meu bisavô, aos sessenta e dois anos de idade, na década de trinta do século passado, abandonou tudo e apareceu por aqui trazendo no colo uma adolescente cujo nome era Loucura. Um despropósito, disseram todos. Mas o verdadeiro rebelde não hesita entre viver e morrer. O senhor Luiz Marques, afogado numa estabilidade quase sempre massacrante, não havia desistido de procurar aquela coisa que atende pelo singelo nome de felicidade.

Gastou janeiro fazendo planos, um mês inteiro ouvindo vozes, que nem Moisés. E aquela menina passando ali, na frente dele, feito convite, descalça, vestidinho de chita, cabelos soltos, meio ressabiada... Os peitinhos inocentes despontando. Então o fazendeiro renascido abandonou tudo: as propriedades e as impropriedades que a elas se ligam, a esposa controladora, os filhos perplexos, as fazendas, as noras, os netinhos, os novilhos e as velhas emoções.

Tudo por causa de Vitalina.

Por aquela menina delicada ele daria o mundo. Por ela, e pelo que então simbolizava aquele amor inexplicável, abandonou mais de mil cabeças de gado e todas as certezas que lhe haviam dado como herança.

Era um autêntico rebelde: acabou trocando o futuro garantido e certo, porém morno, por um presente delicioso e faiscante. Jogou fora o velho baú de premissas usadas, quebrou as algemas — e caiu na Vida.

Trocou um milhão de verdades antigas por uma pequena mochila de sonhos. Porque, você sabe, não dá para salvar a alma sem antes salvar o corpo. E o que mais excita o ser humano é a possibilidade aberta de uma nova vida.

Então o respeitável senhor Luiz Marques Santos tomou aquelas decisões que só os grandes homens conseguem tomar: montou o cavalo negro do risco absoluto e partiu! Pois ele já sabia que o único crime que não tem perdão é desperdiçar a vida. Abandonou tudo para não ter que abandonar a própria existência naqueles caminhos já percorridos.

Não fosse por isso, eu não estaria aqui, agora, à beira do mar, tomando um belo copo de vinho vermelho e contando essas coisas todas pra você.

Sou portanto bisneto da rebeldia.

Sou bisneto da rebeldia, neto da emoção, filho da loucura, irmão do desejo, primo do prazer, amigo da liberdade, e amante de todos os meus amores.

E existo, por incrível que pareça.

No céu da minha boca não há fogos de artifício.

Só estrelas..."

 
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