terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O dia que Júpiter encontrou Saturno

Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela. A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.


Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.


Levemente, para não chamar atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito sobre o peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse.


Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha.


E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every dau, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos dos moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.


-Você gosta de estrelas?

-Gosto. Você também?

-Também. Você está olhando a lua?

-Quase cheia. Em Virgem.

-Amanhã faz conjunção com Júpiter.

-Com Saturno também.

-Isso é bom?

-Eu não sei. Deve ser.

-É sim. Bom encontrar você.

-Também acho.


(Silêncio)


-Você gosta de Júpiter?

-Gosto. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".

-Que é isso?

-Um poema de um menino que vai morrer.

-Como é que você sabe?

-Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.


(Silêncio)


-Você tem um cigarro?

-Estou tentando parar de fumar.

-Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.

-Você tem uma coisa nas mãos agora.

-Eu?

-Eu.


(Silêncio)


-Como é que você sabe?

-O quê?

-Que o menino vai se matar.

-Sei de muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.

-Eu não sei nada.

-Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.

-Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.

-Ninguém compreende.

-Às vezes sim. Eu te ensino.

-Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.

-Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?


(Silêncio)


-Você tomou alguma coisa?

-O quê?

-Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.

-Não tomei nada. Não tomo mais nada.

-Nem eu. Já tomei tudo.

-Tudo?

-Cogumelos têm parte com o diabo.

-O ópio aperfeiçoa o real

-Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.


(Silêncio)


-Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.

-Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.

-Alguma coisa se perdeu.

-Onde fomos? Onde ficamos?

-Alguma coisa se encontrou.

-E aqueles guizos?

-E aquelas fitas?

-O sol já foi embora.

-A estrada escureceu.

-Mas navegamos.

-Sim. Onde está o Norte?

-Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.


(Silêncio)


-Você é de Virgem?

-Sou. E você, de Capricórnio?

-Sou. Eu sabia.

-Eu sabia também.

-Combinamos: terra.

-Sim. Combinamos.


(Silêncio)


-Amanhã vou embora para Paris.

-Amanhã vou embora para Natal.

-Eu te mando um cartão de lá.

-Eu te mando um cartão de lá.

-No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.

-No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.


(Silêncio)


-Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada do meu lado, olhando de perfil.

-Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.

-Vamos nos ver?

-No teu chá. No meu chá.


(Silêncio)


-Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.

-Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.

-Vou te escrever carta e não te mandar.

-Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.

-Vou ver Júpiter e me lembrar de você.

-Vou ver Saturno e me lembrar de você.

-Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.

-O tempo não existe.

-O tempo existe, sim, e devora.

-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?

-Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.

-E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.


(Silêncio)


-Mas não seria natural.

-Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.

-Natural é encontrar. Natural é perder.

-Linhas paralelas se encontram no infinito.

-O infinito não acaba. O infinito é nunca.

-Ou sempre.


(Silêncio)


-Tudo isso é muito abstrato. Está tocando "Kiss, kiss, kiss". Por que você não me convida para dormirmos juntos.

-Você quer dormir comigo?

-Não.

-Porque não é preciso?

-Porque não é preciso.


(Silêncio)


-Me beija.

-Te beijo.


Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das calças descosturadas, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.


Mordeu a unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela. Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés inseguros comprimindo o piso instável do elevador. Só porque era sábado, porque estava indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu olhando em volta.


Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.


Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão de lado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-sena janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.


De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando "se Deus quiser, um dia acabo voando". Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

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